Lançado originalmente, em 1970, Investigações sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, filme considerado essencial no catálogo da dramaturgia dos longas metragens italianos, sobretudo dentro da filmografia do aclamado Elio Petri, é um clássico nato.
O filme, de quase duas horas, relata a história de um inspetor do alto comissário da polícia italiana, que assassina a amante numa noite de amor, e deixa provas de seu crime; a intencionalidade, de fato é: deixar os vestígios do crime e fazer com que as investigações cheguem à definição de sua culpa. No entanto, com toda a magistratura de sua alta posição na polícia, o foco desvia qualquer olhar e pista (mesmo que elas existam) sobre a possível culpa que ele pode ter acerca do assassinato de Augusta Terzi, a amante — vivida aqui, pela atriz Florinda Bolkan.
O título do filme se torna claro e absolutamente incontornável, quando se é entendido o objetivo supremo do inspetor. Fica nítido a intencionalidade do protagonista em verter para ele toda a culpa, mas sobretudo, provar à si mesmo, a capacidade de se transviar do fato: ser um verdadeiro cidadão acima de qualquer suspeita. (Daqui em diante, surgem também, as primeiras reflexões que o filme provoca como mensagem.) Embora ficção, o filme bem se posiciona em sua contextualidade social/real: o maio de 1968 que provocou mudanças nas esferas político-sociais na França, e atingiram a Europa como um todo, refletem um sistema social já antiquado para a realidade daqueles dias. O sistema repressor e ditatorial do governo estabelece em alguns a devida repulsa e resposta, essas, muito bem estilizadas nos roteiros de Elio Petri e Ugo Pirro: sendo elas a real oposição às imposições escandalosas do governo, que bem se delimitam, e se estabelecem como grito pela liberdade e um “não” à censura, sobretudo das, e nas artes.
Investigações sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, bem se encaixa a esse momento histórico. No avanço do filme, fica nítida a assustadora ignorância de parte dos chefes do inspetor policial, em não perceber que o mesmo é sim capaz de ser um criminoso. (Aliás o conceito da humanidade e a natureza má, bem deveria se encaixar a todos, independente de suas posições, subentende-se.) Tudo isso atrelado, no filme, às investigações a fim de chegar à uma conclusão que se resolva, afinal de contas, “quem matou Augusta?”. A percepção clara que o filme elucida é de como se todo o esforço do protagonista em deixar e influenciar as pessoas a perceberem sua culpa, fosse em vão, visto claramente que não há olhos para a confiabilidade de que ele realmente seja um culpado: isso desenvolve uma extrema autoconfiança do inspetor, e uma estranha arrogância, que se submete, de forma infeliz e soberba aos princípios espalhafatosos de uma sociedade cega, que pouco ouve as minorias, sobretudo quando essas disseminam verdades, que são difíceis demais para se creditar confiança e empatia.
Magistralmente, Elio Petri retrata uma história, que abre muitos pontos de discussão, focalizando luz sobre lugares onde ainda não havia: os questionamentos que põem em cheque: 1) a honestidade e 2) a credibilidade plena que não se corrompe, acabam por assim levantar pontos de relevância. O filme se estabelece com o conceito de atemporalidade, que justamente lhe apetece. Os flashbacks, as inconstâncias propositais, e todas as digressões que o filme carrega com um “elementismo” especial, provocam no espectador perguntas, que começam no privado — o “eu” perguntando a si mesmo —, e depois elas se encarregam de se tornarem por si só plurais, o que causa: a reflexão constante.
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Em entrevista, recolhida por Angela Prudenzi e Elisa Resegotti, para o livro Cinema político italiano: anos 60 e 70 (Cosac Naify, 2006), a atriz Florinda Bolkan — intérprete da mulher que é morta pelo inspetor policial, no filme de Elio Petri — conta sobre os preparativos para o filme: “Quando li o roteiro, minha personagem, que se caracterizava por um profundo sentido de morte, parecia-me uma louca, mas, ao interpretá-la, entendi que transcendia essa aparência e que devia ser transformada em metáfora contra o poder. De fato, ela saía com o policial, mas zombava dele e se oferecia a um amante revoluconário.” (p. 159)
Se diante dos outros (entende-se aqui, os próprios agentes policiais que investigavam o caso do assassinato), o inspetor e protagonista, vestia uma máscara de auto-afirmação e soberba inerente — na declaração interna de que ele estava acima de qualquer suspeita, nos flashbacks — bem escalados por Petri ao longo do filme — pode-se perceber o conflito de cunho sexual vivido por ele e a amante, Augusta Terzi, que zomba e “desfigura” a imagem “máscula” e intranstornável que ele tenta passar para os outros. Zombarias essas, que criticam em alto grau, sua infantilidade sexual, e, sobretudo sua pequenez masculina. Essa descaracterização, que acontece sempre nos momentos a dois, provocada pela amante, pode ser considerada (ou não), como motivo capitular para a discussão de outros motivos, que não os já estendidos anteriormente, que levam o inspetor a matar sua amante.
Sem início, meio e fim bem delimitados, Elio Petri, coloca as mãos no arado, sem medo, ao contestar “realidade X ficção”, “limites X liberdade”, “clareza X embaço”, “teoria X prática”, “suspeita X confiança”, “domínio X submissão”, em um filme que perdura, e perdurará como um ocasionador de provocações.
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