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“E as memórias só surtam na hora do desastre, do choque, quando se pisa no tomateiro e a lembrança vem inteira, o tempo, a hora, o cigarro; a barba áspera, a promessa segura do abraço. Queremos ir longe, ao dia em que deixamos de ser peito, praia, nuvens, bicho de goiaba. Queremos a hora da borboleta, do desatar, em que viramos “eu”, a manga é manga, eu sou eu. Saudades de nós mesmos, naquele lugar, com aquela gente.”
— Da crônica “Lembranças”, em O frango ensopado da minha mãe.
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No último mês de outubro, completou-se 1 ano do falecimento de Nina Horta. Cozinheira, foi também proprietária de um dos mais renomados bufês de São Paulo – o Ginger. Além disso, Nina ganhou projeção nacional como cronista de gastronomia em vários veículos de imprensa, como, dentre eles, no jornal Folha de S.Paulo. Lá, por mais de 30 anos, teve a liberdade que poucos colunistas de comida tiveram – ou têm –: ela podia escrever sobre o que quisesse sem se deter apenas a receitas ou “como fazer tal prato”. Seus assuntos na coluna iam das recordações dela sobre a última viagem que tinha feito a Paraty à explicações detalhadas de algumas tradições da gastronomia judaica; de perquirições aos filmes de Alfred Hitchcock que acabara de rever à verdadeiras declarações de amor pelo modo simples de cozinhar. Tudo a interessava, e tudo, de alguma forma, deixava nela o elemento necessário para fazer o que ela própria dizia que sabia fazer de melhor: escrever.
Os textos de Nina interessam e impressionam não apenas pelo que está ali, mas pelo que não está. Nina captura leitores (novos ou aqueles já maduros) pelo seu próprio poder que, diga-se, não está nas panelas, nem nos temperos, mas sim no modo perspicaz, autônomo e maduro de escrever sobre tudo, ou quase tudo. Nina tem, realmente, a escrita como ofício e dela flui seu boníssimo desempenho. E como boa escritora que é, ela também alerta (cozinheiros, mas vale para todos) sobre sermos bons leitores. “Para sermos bons cozinheiros precisamos ler não só livros de comida, mas romances, principalmente. (…) A leitura de um bom romance é uma viagem visceral, é uma experiência, é um jeito de ter olhos e ouvidos. Somos capazes de captar por meio da literatura forças e energias que nos sacodem de verdade”, diz numa crônica.
À medida que se avança na leitura dos textos de Nina Horta, nota-se que a escritora tem a comida apenas como base para falar sobre os assuntos de sua preferência. Pode-se afirmar, portanto, que o seu pioneirismo no gênero (literatura gastronômica), se apoia fundamentalmente neste aspecto, que é a liberdade. Engana-se o leitor de primeira viagem que supõe encontrar em Nina receitas, medidas, passo-a-passo detalhado. Ela própria, em entrevistas, costumava dizer que uma das coisas que sempre detestou, era justamente o apego a receitas; ela não era uma cozinheira “de receitas”, embora se apoiasse em livros de receitas imensos e antigos de Elizabeth David e Marcella Hazan, por exemplo.
As inúmeras colaborações para o jornal Folha de S.Paulo, renderam 3 livros. Não é sopa (Companhia das Letras), já considerado um clássico no gênero, saiu pela primeira vez em 1995, e ganhou uma reedição, depois de anos fora de catálogo, no começo de setembro de 2020 pela Companhia de Mesa, selo gastronômico da Companhia das Letras; em seguida, Vamos comer (MEC – fora de catálogo), de 2002, que é tributário de crônicas na Folha e também de relatos de merendeiras ao redor do país; e por fim O frango ensopado da minha mãe (Companhia das Letras), o mais recente, lançado em 2015.
É interessante falar sobre os livros de Nina Horta porque eles também possuem um papel pioneiro no Brasil, se tratando desse nicho da literatura. Na segunda metade dos anos 1990, por exemplo, a editora Companhia das Letras procurava publicar livros que não fossem apenas ficção ou poesia – gêneros que já vinham sendo publicados. Nina Horta, que já estava fazendo um certo sucesso com sua coluna na Folha, e em 1995 publicava pela mesma casa seu primeiro livro (Não é sopa), se tornou, na editora, uma espécie de curadora dentro da categoria dos livros gastronômicos, muitos até então, completamente desconhecidos do público brasileiro. Foi aí que nomes como M.F.K. Fisher, Elizabeth David, Anthony Bourdain, Jeffrey Steingarten e outros, começaram a pipocar nas prateleiras das livrarias brasileiras. Nomes que inspiravam Nina, mas que sequer tinham traduções no país.
Dentre esses nomes, vale destacar o, talvez, mais importante: o da norte-americana M.F.K. Fisher. A sigla corresponde a Mary Frances Kennedy. Ela foi, como Nina, uma pioneira nos Estados Unidos no que tange a literatura gastronômica. Nascida em Albion, no Centro-Oeste dos EUA, em 1908, Fisher foi também colunista e crítica de restaurante, além de cozinheira, nos mais importantes veículos de imprensa norte-americanos, como o The New York Times. Fisher adotava as siglas abreviadas na tentativa de deter possíveis críticas ao fato de uma mulher fazer um “trabalho de homem” – nesse caso, ter espaço para publicar crítica de comida em um jornal de grande circulação. É interessante olhar para a biografia de Fisher, e também para os seus livros, e verificar que numa América aparentemente longínqua (estamos falando das décadas de 1950-60, mais ou menos), houve uma mulher que quebrou paradigmas e abriu o caminho sobre o qual muitos hoje andam.
De Fisher, Nina Horta era fã confessa e não hesitava em dar créditos fosse em entrevista, fosse em sua coluna no jornal. Dela, saíram no Brasil dois dos seus mais conhecidos livros, pela Companhia das Letras – que, hoje, também estão fora de catálogo. São eles, Um alfabeto para gourmets (1996, tradução de Celso Nogueira), e Como cozinhar um lobo (1998, tradução de Pedro Maia Soares). Existe uma frase de Nina Horta, na orelha do livro Um alfabeto para gourmets, que descreve M.F.K. Fisher da seguinte maneira: “(Fisher) Escrevia tão bem que muitas vezes foi encostada à parede, quase acuada por aqueles que achavam que rebaixava sua profissão de escritora ao falar só sobre comida. Respondia: ‘Como todo ser humano, tenho fome. Mais do que isso. Tenho a impressão de que nossas três necessidades vitais – comida, segurança e amor – estão tão entrelaçadas que não se pode falar de uma sem falar da outra… Há mais que uma comunhão de corpos quando dividimos o pão e bebemos o vinho.’”.
Tanto Fisher quanto Nina tinham técnicas semelhantes na elaboração e na execução da crônica gastronômica. Ambas fragmentam o texto abrindo margem em todo ele para que o leitor insira suas próprias experiências e crenças sobre o que se lê. E como isso funciona? Na introdução de Um alfabeto para gourmets, Fisher reflete que podemos melhorar “os padrões deprimentes da vida na Terra”, fazendo-o através de uma renovação do nosso interesse pelo “saciar da fome” que todos nós temos. É a partir daí que sobe à superfície uma interpretação dos textos dessas autoras. A crônica é um dos poucos gêneros, se não o único, que se refere a um olhar subjetivo e pessoal, uma percepção cirúrgica da realidade. É só através da crônica que Nina, por exemplo, faz de uma simples viagem à Paraty, um passeio visual, lírico, sentimental e literário. E tudo isso em formato de texto. A impressão que fica é a de que estamos ouvindo a própria autora nos contando tais histórias do sofá de sua casa. E, portanto, o interesse que se renova lendo uma crônica, seja gastronômica ou não, é o primeiro passo para o saciar dessa fome, que diz Fisher em seu livro.
Mas a generosidade de Nina Horta não estava somente na sua execução literária, estava também na administração da sua relação com os leitores. Há uma seção no livro O frango ensopado da minha mãe, intitulada “Produtos” em que Nina conta algumas histórias dos seus leitores mais fiéis, a influência que ela exercia, mesmo que do modo mais sutil, como comprar romãs, sobre eles entre outras peripécias do “Painel do Leitor”.
Nina Horta, leitora de Pedro Nava, Marcel Proust, V.S. Naipaul, Virgínia Woolf; de filosofia e livros sobre baleias; de livros sobre a tradição judaíca e cronistas do recôndito inglês. Nina, leitora de pelo menos 5 jornais diferentes no domingo pela manhã. Cozinheira de alma, de fogão. Fã número 1 de carne de porco e a última a comprar 1 saco de arroz no supermercado, porque detesta arroz. Que falta ela faz.
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Sugestões de leitura:
– O frango ensopado da minha mãe, de Nina Horta. Companhia das Letras, 2015.
– Não é sopa (Nova edição), de Nina Horta. Companhia de Mesa, 2020.
– Um alfabeto para gourmets, de MFK Fisher. Companhia das Letras, 1996. Tradução de Celso Nogueira.
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