São Paulo, 19 de abril de 1923: nascia aquela que ensinaria, indiretamente, a mesclar memórias à ficção e fazer literatura atemporal: Lygia Fagundes Telles. Sinônimo de dificuldades para uns, facilidade para outros, mas sobretudo, em igualdade: faz uma leitura de mundo, que gera identificação, compaixão e mudança. É certo que quando se fala em boa literatura, não se fala em prolixidade e domínio da norma culta (não)padrão, restrita-à-pessoas-de-outro-mundo-que-são-dotados-de-conhecimento-e-únicos-capazes-de-entender. A boa literatura, é como tenta definir Arthur Schopenhauer em Da leitura, e dos livros: “O que acontece na literatura não é diferente do que acontece na vida: para onde quer que se volte, depara-se imediatamente com a incorrigível plebe da humanidade, que se encontra por toda a parte em legiões, preenchendo todos os espaços e sujando tudo, como as moscas no verão.”. Literatura é experiência. É mergulhar-se e deixar-se ser inundado pelo que vem e há de vir. Repito: é experiência. Lygia, prova mais do que ninguém que entende a literatura, e é segura no que transmite ou tenta transmitir.
Lygia Fagundes Telles já declarou em uma de suas entrevistas: “A criação literária? O escritor pode ser louco, mas não enlouquece o leitor, ao contrário, pode até desviá-lo da loucura. O escritor pode ser corrompido, mas não corrompe. Pode ser solitário e triste e ainda assim vai alimentar o sonho daquele que está na solidão.”.
Alguns trechos (que podem fazer sentido, ou não, para quem lê sem o contexto) que fazem de Lygia Fagundes Telles, Lygia Fagundes Telles:
1
“Um crítico literário do século XIX, irritado com o livro de uma poetisa que ousou sugerir em seus poemas alguns anseios políticos, escreveu no seu artigo: “É desconsolador quando se ouve a voz delicada de uma senhora aconselhando a revolução. Por mim, desejaria que a poetisa estivesse sempre em colóquios com as flores, com as primaveras, com Deus.”
Mexendo em antigas pastas na tentativa de ordená-las, acabei encontrando o recorte de uma crônica publicada em 1944. É sobre um pequeno livro de contos que escrevi quando cursava a Faculdade de Direito. Diz o cronista: “Tem essa jovem páginas que apesar de escritas com pena adestrada, ficaria melhor se fossem da autoria de um barbado.”
Afetei certo desdém pela crônica mas fiquei felicíssima: escrever um texto que merecia vir da pena de um homem, era no máximo para a garota de boina de 1944. Eu trabalhava, estudava e escolhera dois ofícios nitidamente masculinos: uma feminista inconsciente mas feminista.”
A disciplina do amor (Memória & Ficção), p. 91, 2010: Companhia das Letras. Publicado originalmente em 1980.
2
1) “Eis aí uma boa pergunta dizem os políticos nojentos e não sabem responder a essa boa pergunta. Para ganhar tempo, fazem aquelas caras, disfarçam e falam em outra coisa. Nem a minha pequena analista sabe a resposta. Não tem importância, paro quando quiser, desintoxicação. Ginástica. Nem preciso de outra plástica, de novo o palco, aplausos. A glória. Amo a glória, sou um poço de vaidade mas digo que estou me lixando com essas futilidades, poso de artista solidária, me deixa em paz! Até que a vontade da luta me sacode e então saio desencadeada, do elmo aceso feito Joana d’Arc, tanta certeza de vitória, tanta coragem.”
2) “Prendas domésticas, a pequena Ananta anotaria na sua ficha, a analista gosta dos rótulos. Mulher-goiabada. E daí? Mexia tão contente o seu doce no fundo do tacho. Morta, não me pareceu triste mas apreensiva, na iminência de alguma descoberta. Os cheiros. Fui buscar correndo o vidro de água de lavanda que ela usava, espremi o algodão encharcado em redor da sua face, acendi o incenso perfumado, ah! mamãe. A minha única amiga. Mulher detesta mulher. Detesta. A pequena Ananta me fulminou com seu olhar terapêutico: Rosa, a que mulheres você está se referindo? perguntou. Ficou um instante limpando os óculos com o lencinho que tirou do bolso do avental. Quando me encarou novamente foi com expressão penalizada. Sim, Ananta, é claro que sou eu que me detesto. Como posso julgar as modernas comunidades de mulheres emancipadas, as deslumbradas mulheres tão conscientes na virada deste século de merda, hein?!… Ela não me respondeu. Devia estar pensando que a burguesia não tem mesmo jeito. Concordo mas mulher detesta mulher, ainda aquele clima de competição com o rei reinando entre as odaliscas. Só essa história de mãe com filha é que funciona. Às vezes.”
As horas nuas (Romance), p. 19-20; p. 21-2, 2010: Companhia das Letras. Publicado originalmente em 1989.
3
“Um momento, agora eu estava em Marília e tinha que me apressar, o depoimento seria dentro de uma hora, ah! essas demoradas lembranças.
Quando entrei na Faculdade, uma jovem veio ao meu encontro. O olhar estava assustado e a voz me pareceu trêmula, A senhora ouviu? Saiu agora mesmo no noticiário do rádio, a Clarice Lispector morreu essa noite!
Fiquei um momento muda. Abracei a mocinha. Eu já sabia, disse antes de entrar na sala. Eu já sabia.”
Durante aquele estranho chá (Memória & Ficção), p. 16, 2010: Companhia das Letras. Publicado originalmente em 2002.
4
“— Por obséquio, queria sua opinião sobre alguns problemas importantes da nossa comunidade — digo levantando mais o microfone.
— Antes de mais nada, pode declinar seu nome?
— Lia de Melo Shultz.
— Profissão?
— Universitária. Ciências Sociais.
— E… Pode-se saber sua atual situação naquela casa de ensino?
— Rodei este ano. Faltas. Tranquei a matrícula.
— Muito bem, muito bem. E o livro? Disseram-me que tem um livro quase pronto. Segundo a informação, trata-se de um romance, não?
— Rasguei tudo, entende? — disse ela soprando a fumaça na minha cara. — O mar de livros inúteis já transbordou. Ora, ficção. Quem é que está sem importando com isso.”
As meninas (Romance), p. 29, 2009: Companhia das Letras. Publicado originalmente em 1973.
5
“— Você conhece estas pílulas? São especiais para problemas domésticos, a gente toma uma e fica a léguas das aporrinhações, compreende? Conheço pílula para tudo mas para problemas domésticos ainda não conhecia. Debrucei-me na janela que dava para o pátio interno do pensionato. Um modesto jardim ressentia-se sob o sol implacável. Quem teria morado antes nesta casa? De qualquer maneira tinham desaparecido totalmente os vestígios dos antigos moradores e a impressão que se tinha agora é que ali sempre estiveram freirinhas cinzentas, alugando quartos a moças sem lar e de poucos recursos. Moças sem lar mas que precisavam tomar pílulas azuis para se esquecerem dos seus problemas.
— Você anda se desligando demais, Marfa. Vai acabar uma aposentada total.
Ela debruçou-se ao meu lado na janela. Senti seu perfume de flor de maçã.
— Mas esse vai ser o mundo do futuro, meu bem. Um mundo de desligados, compreende? O desespero humano exorbitou, não se pode mais aguentar tantas operações a frio, é preciso recorrer a alguma coisa. — Fez uma pausa. E num tom mais brando: — Ninguém aguenta a vigília, nem essas santinhas — disse apontando para uma freira que atravessou o jardim e sumiu numa porta. — Parecem tão firmes, não? Mas precisam também de suas pilulazinhas, no fundo, o mesmo desespero de se desligar ou pela farmácia, ou pela Igreja. O que dá no mesmo. Tomam pílulas de fé, ficam em êxtase, do êxtase passam ao estado de levitação… Como nós, exatamente como nós, apenas os meios são outros.”
Verão no aquário (Romance), p. 144-5, 2010: Companhia das Letras. Publicado originalmente em 1963.
6
“Omsk, 29 de setembro de 1960.
Ninguém poderá responder essas perguntas Aleksandra Petrovitch, tive vontade de dizer-lhe. E senti assim de repente tamanho bem-estar porque ali estava eu sem nome, sem passado e sem futuro, como se tivesse acabado de nascer. Lembrei-me da odiosa pergunta que os políticos brasileiros costumam fazer naquele tom arrogante, “O senhor sabe com quem está falando?”.
Aqui na Sibéria ninguém sabe de nada, inútil tirar do bolso o cartão de deputado ou senador, ah! não adianta exibir medalhas e os louros, não adianta nada. Para a Sibéria deveriam ser enviados os delirantes de vaidade e orgulho, trabalhos forçados para eles! Os ventos passam, os homens passam e ninguém sabe de nada.”
Passaporte para a China (Crônicas de Viagem), p. 42-3, 2011: Companhia das Letras.
7
“O estreito caminho fechado entre as árvores dava para uma clareira e ali se bifurcava. Virgínia hesitou entre as duas trilhas. “Esta deve ser a do rio”, pensou. E seguiu por ela, oferecendo o rosto ao morno sol do crepúsculo. A brisa sussurrava por entre a folhagem. No céu de um azul pálido, pairavam nuvens brancas. Um pássaro cortou a quietude com seu grito alegre como uma risada.”
Ciranda de pedra (Romance), p. 194, 2009: Companhia das Letras. Publicado originalmente em 1954.
8
“— A senhora é conformada.
— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.
— Deus — repeti vagamente.
— A senhora acredita em Deus?
— Acredito — murmurei.
E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. aí estava o segredo daquela confiança, daquela calma, Era a tal fé que removia montanhas…”
CONTO: Natal na barca, presente em Histórias de mistério, p. 31, 2012: Companhia das Letras. Publicado originalmente em 1970, no livro Antes do baile verde.
9
“Abro uma antiga mala de velharias e lá encontro minha máscara de esgrima. Emocionante o momento que púnhamos a máscara — tela tão fina — e nos enfrentávamos, mascarados, sem feições. A túnica branca com o coração de feltro vermelho, em relevo no lado esquerdo do peito, “Olha, esse alvo sem defesa, menina, defenda esse alvo!”, advertia professor e eu me confundia e o florete do adversário tocava reto no meu coração exposto.”
A disciplina do amor (Memória & Ficção), p. 59, 2010: Companhia das Letras. Publicado originalmente em 1980.
10
“Escrevi que toda minha vida convergia para ele e que era só dele que iria se irradiar de hoje em diante. Quero te dizer também que nós, as criaturas humans, vivemos muito (ou deixamos de viver) em função das nossas imaginações geradas pelo nosso medo. Imaginamos consequências, censuras, sofrimentos que talvez não venham nunca e assim fugimos ao que é mais vital, mais profundo, mais vivo. A verdade, meu querido, é que a vida, o mundo dobra-se sempre às nossas decisões. Não nos esqueçamos das cicatrizes feitas pela morte. Nossa plenitude, eis o que importa. Elaboremos em nós as forças que nos farão plenos e verdadeiros.”
As meninas (Romance), p. 75, 2010: Companhia das Letras. Publicado originalmente em 1973.
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“Sabia que não ia voltar mas continuava pensando com tanta força. Como quando se tira um vestido que não é pra usar, só para olhar. Só para ver como ele era. Depois a gente dobra de novo e guarda mas não se cogita em jogar fora ou dar. Acho que saudade é isso.”
As meninas (Romance), p. 142, 2010: Companhia das Letras. Publicado originalmente em 1973.
Lygia clama: “Me leiam, não me deixem morrer!”.