Júlia, narradora de Vista chinesa (Editora Todavia, 2021) — novo romance de Tatiana Salem Levy — é arquiteta e mãe de dois filhos. O livro todo é o resultado de uma carta que a narradora escreve aos filhos para contar-lhes que um dia foi estuprada. Este fatídico episódio é o eixo que sustenta o romance do início ao fim.
Efervescido pela Copa do Mundo de 2014, o Rio de Janeiro é o point de milhares de turistas nacionais e estrangeiros — nesse contexto Júlia se prepara para a execução de projetos arquitetônicos importantes envolvendo outro evento esportivo, as Olimpíadas, que o Brasil sediaria dois anos depois. Embora a conjuntura soasse exitosa para as relações profissionais, correndo em um dia de sol pela Vista Chinesa, no Rio, Júlia é interpelada por um homem que se escondia na mata. Bem ali, ocorre o estupro.
Tatiana Salem Levy utiliza recursos de literalidade para narrar a cena perturbadora — o que é completamente justificável. O estilo evoca o tom testemunhal presente em livros como É isto um homem?, de Primo Levi. Que fique claro que, há uma diferença entre testemunhar um estupro e testemunhar as agruras de um campo de concentração em Auschwitz porém, em ambos os casos a essência é a presença e a permanência do sofrimento. As passagens mais doídas de Vista chinesa são exatamente as que detalham o ocorrido com Júlia, e as mais amargas são as que narram a experiência de se conviver com os desdobramentos internos e externos de um estupro.
Em todo o romance, o leitor acompanha um fluxo de consciência praticamente frenético. Aspas e vírgulas pouco importam quando, na verdade, a grande sacada é conduzir a narrativa de modo a produzir um efeito que não se adequa ao linear. Ao passo que se leem alguns trechos de Júlia se lembrando de como ela estava no dia em que passeava pela Vista Chinesa, ocorre o cruzamento desses dados com outros momentos nos quais ela já se encontra na delegacia fazendo a denúncia do crime. E sobressai disso a memória aguda e detalhista que não se esquece, mas remói. “Eu lembro todos os dias. Às vezes de um pormenor, às vezes de muitos”, diz Júlia.
As oscilações do tempo não são as únicas. O processo de ruminar o que ocorreu é um exercício de Júlia em toda a carta — escrita em meio a dor. Ora ela se sente culpada; ora não vê esperança para a resolução do conflito; ora se sente acanhada; ora desprotegida. Júlia conta com a ajuda de parentes e amigos, mas, segundo ela, “o luto é assim: a gente enterra na floresta, enterra na análise, enterra no trabalho, enterra na vida que segue, mas há sempre uma parte que volta”.
Enquanto ela está dando detalhes para a polícia fazer a reconstituição do criminoso através do retrato falado, percebemos a pressa em torno do caso para achar um culpado. É difícil para Júlia informar com detalhes as características do homem e, embora ela o consiga descrever, para os peritos é como se faltasse algum outro detalhe. O sofrimento em conceder esses detalhes aciona as lembranças ainda doloridas do dia em que foi interpelada para dentro da mata.
Já a cidade do Rio de Janeiro, retratada em Vista chinesa com todas os seus perigos e algozes, é travestida de beleza, segurança e poder econômico para sediar os grandes eventos à época. Como as fantasias de Carnaval que encobrem o rosto ou o corpo, é a cidade que, na mata fechada, esconde — ou revela — os seus piores frutos e sequestra seus maiores projetos. Não dá para ler o romance de Tatiana Salem Levy e não classificar, também, a própria cidade como uma personagem importante que, aqui, está mais para vilã do que para heroína.
No desfecho de Vista chinesa, nos deparamos com a revelação de que a história de Júlia é inspirada em um caso real. “Não tenho vergonha do que aconteceu. Eu quero que você escreva que isso aconteceu de verdade — e que aconteceu comigo”, pede Joana Jabace à amiga e autora do romance. A coragem de se assumir como vítima do estupro narrado, parte de uma queixa dela própria pois “explicitar a veracidade dos fatos” não seria suficiente — era necessário dar nome aos bois.
Em um mar de livros contemporâneos que se pretendem muita coisa e entregam pouco do esperado quando se trata de testemunhar o nosso tempo, é bastante relevante o que Vista chinesa faz. Não é um livro pioneiro na temática, tampouco o único a retratar uma situação que, no Brasil — infelizmente —, já se tornou corriqueira nos noticiários e nas redes sociais. Mas a condução que Tatiana Salem Levy faz dessa história é impecável. Vista chinesa poderia se sobressair facilmente só por esses elementos de domínio da autora, no entanto, é por se propor e, ao mesmo tempo, entregar um testemunho vivo sobre violência contra a mulher que o romance merece o destaque que tem recebido e que o inscreverá na galeria de livros que comunicam a História às futuras gerações.
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Créditos:
Foto de capa.